Quebrando os arcos: OS OUTROS
- Stephanie Degreas
- 19 de jul. de 2023
- 8 min de leitura
Os Outros é um fenômeno de audiência a ponto de ter tido sua segunda temporada confirmada antes mesmo de todos os episódios da primeira terem ido ao ar. Agora, com a primeira temporada inteira disponível na Globoplay (e devidamente maratonada), resolvi quebrar os arcos de seus 12 episódios; ou seja, levantei os principais eventos da história e analisei como ela é estruturada.
Para as pessoas menos ligadas em roteiro, essa é uma boa maneira de analisar com mais calma o que aconteceu em Os Outros até agora. Para as aficionadas, vamos ser nerds juntas e destrinchar os elementos de uma belíssima narrativa!
Antes de tudo, vamos aos créditos. Os Outros é inspirada em um argumento de Fernanda Torres e criada e escrita por Lucas Paraizo (Sob Pressão). Participaram da escrita dos episódios Flavio Araujo (Sob Pressão), Pedro Riguetti (Sob Pressão), Bárbara Duvivier (Filhos da Pátria), Thiago Dottori (Vips) e Bruno Ribeiro (Manhã de Domingo). Luisa Lima assina a direção artística e Lara Carmo, a direção. Dica: vale conferir também os outros projetos de todos esses nomes.

Frame de Os Outros: Adriana Esteves interpreta Cibele diante do agitado condomínio Barra Diamond.
Para quem não lembra (ou não conhece)
A primeira temporada de Os Outros conta a história de uma briga entre duas famílias vizinhas em um condomínio de classe média na Barra da Tijuca, que acaba se tornando cenário de uma série de crimes conforme a discórdia se agrava. Ao longo de doze hipnotizantes episódios, Os Outros se aprofunda nos dramas e conflitos do casal Cibele (Adriana Esteves) e Amâncio (Thomás Aquino) a partir do momento em que seu filho Marcinho (Antonio Haddad) arruma confusão com o impulsivo Rogério (Paulo Mendes), filho de Wando (Milhem Cortaz) e Mila (Maeve Jinkings). O também vizinho e ex-policial Sérgio (Eduardo Sterblitch) se envolve na contenda junto com a síndica do condomínio, Lúcia (Drica Moraes), até que o microcosmo por ela gerido se torna praticamente um campo de guerra. A série lembra o tom de Relatos Selvagens no que concerne o drama e o grau de violência quase absurda (embora perfeitamente crível) que atinge.
Como é possível notar pelo resumo, Os Outros é uma série com multiprotagonismo, ou seja, há episódios que darão mais destaque aos eventos vividos por Wando, sem deixar de acompanhar as demais personagens, enquanto outros episódios focarão em Cibele ou Lúcia. Este é, inclusive, um dos meus maiores elogios à dramaturgia. O roteiro costura as diferentes histórias com uma maestria inacreditável, o que, conceitualmente, faz todo sentido: estamos em um condomínio onde as vidas das pessoas se entrecruzam a todo momento. Quando menos percebemos, uma trama secundária afeta a principal a ponto de tomar seu lugar. Tudo da maneira mais fluida possível. Um trabalho dificílimo de escrita que, assistindo, parece natural.
O primeiro episódio já estabelece esse formato e apresenta o gatilho da temporada: depois que Marcinho é espancado por Rogério no início da história, a hiperzelosa Cibele compra uma arma para defender a família. Sempre começaremos os episódios com um flashforward que nos adianta seu final, seguido de um flashback da vida da personagem em destaque. No caso do piloto, ela é Cibele. Esse mecanismo permite que saibamos de cara quem protagonizará a trama principal de cada episódio, além de dar pistas de sua motivação central. Nas palavras do próprio criador da série--
O formato é o resultado do diálogo entre a forma e o conteúdo. Eu não acho que ele é gratuito, porque quando ele não apoia o que a gente quer contar, ele não tem sentido. O que a gente queria com esse formato? Era de alguma maneira reforçar aquilo que a série já está trazendo enquanto conceito: ninguém é uma coisa só. Então aquela cena que você vê no começo do episódio, de uma mulher comprando uma arma -- que você não entende por quê, nem como, nem que história é essa de comprar uma arma -- quando chega lá no final, você entende o motivo dela. Você pode até não concordar, mas você entende o motivo dela. (..) No momento em que você estrutura o capítulo com o futuro, o passado e o presente, você cria no espectador um código. (Lucas Paraizo no episódio "Os Outros Somos Nós" de "Os Outros - O Podcast")
Analisando episódio a episódio, percebemos que, assim como no teaser do piloto, as muitas curvas dramáticas que levam ao gancho final da temporada são meticulosamente calculadas para engajar o público na discussão proposta pela série. Enquanto os acontecimentos se densificam, as personagens revelam camadas profundas que nos falam um pouco sobre nós mesmas. Todo início de capítulo, o letreiro inicial com o título da série reforça a mensagem: sou os outros.

No gif com o letreiro inicial do segundo episódio de Os Outros, Maeve Jinkings interpreta Mila.
A tabela que segue
destaca os principais pontos de virada da trama principal de cada episódio ou das demais tramas que a afetam diretamente. Vale lembrar que como estamos analisando uma série com multiprotagonistas, cada núcleo de personagens tem seu próprio setup, incidente incitante, crise e clímax. Inclusive, o setup da maior parte das personagens ocorre, quase sempre, depois do incidente incitante da trama principal. No primeiro episódio da série, por exemplo, enquanto o que dispara a trama principal é a briga entre Rogério e Marcinho, descobrimos posteriormente que Wando trabalha em uma concessionário e o gatilho de seu enredo, logo em seguida, é a sua demissão.
Antes de mergulharmos na história, quero também chamar a atenção para a eficiência dos roteiros: nenhuma cena da série serve a apenas um propósito. Diversos eventos (ou beats, para as mais íntimas) ocorrem em uma mesma cena, fazendo com que a narrativa ande tão rápido que, mesmo com os teasers adiantando sempre o final do episódio, eu, ao ver, me perguntava a todo momento: e agora, para onde a história vai? Isso evidentemente só faz crescer o clima de tensão que permeia a primeira temporada. O enredo é tão explosivo, que por vezes tive até dificuldade de identificar qual de todos seus eventos era a crise. Faço essa confissão porque creio que isso só possa ser bom sinal; quer dizer que colei os olhos na tela e não tirei mais.
Lembrando que, na tabela, cada coluna (vertical) equivale a um episódio, enquanto a leitura das fileiras (horizontal) permite examinar a progressão da temporada. Dessa maneira, é possível entender os episódios individualmente tanto quanto o papel de cada um deles no arco geral da série. [nota: é possível baixar a tabela]
* (se você não assistiu a Os Outros, a partir daqui vai encontrar um zilhão de spoilers da série) *

Para designar o papel de cada episódio no arco da temporada, não aderi a nenhuma jornada ou lista de beats específica. Escolhi beats presentes nas sistematizações mais comuns da estrutura clássica e nomeei de acordo com sua função. Assim, em lugar de tentar encaixar Os Outros em uma estrutura pré-existente (como a beat sheet de Blake Snyder, ou a Jornada da Heroína de Maureen Murdock), eu busco destacar a relevância de cada evento dentro de minha interpretação da estrutura proposta pela própria série.
Só para explicar, o SETUP equivale à apresentação do universo e do status quo das personagens antes do INCIDENTE INCITANTE (ou GATILHO), que é o evento que faz com que as circunstâncias mudem. A HESITAÇÃO é o momento em que as personagens relutam em aceitar as novas circunstâncias em que se encontram, ao passo que, AO INÍCIO DA JORNADA, elas começam a agir de acordo com as mudanças e se deparam com TESTES E INIMIGOS, até que uma NOVA REALIDADE se estabelece de vez. Chamei de PREPARAÇÃO PARA A CRISE o adensamento da história, quando as personagens reagem à nova realidade colocando um novo plano em ação. Tal plano levará à CRISE, ponto de grande tensão a partir do qual é impossível voltar para as circunstâncias iniciais: tudo muda radicalmente. A crise afeta as personagens de maneira a levá-las a uma QUASE DESISTÊNCIA, mas elas acabam por reagir em uma NOVA TENTATIVA que as leva ao FUNDO DO POÇO, em que tudo parece perdido. Na última e maior tentativa de se reerguerem as personagens chegam ao CLÍMAX, no qual se deparam com o maior obstáculo já encontrado. Aqui, elas se tornam outras, completamente distintas do que eram no começo da história. E, por fim, se encaminham à RESOLUÇÃO.
Na maior parte dos episódios de Os Outros, o clímax, embora tenha um ponto culminante, é uma sequência meticulosamente construída para escalar a tensão de maneira a entrelaçar diferentes tramas e situações que, muitas vezes, resultam em um mesmo evento. Por isso, optei por identificar uma SEQUÊNCIA CLIMÁTICA, em lugar apenas do clímax. Quem fala em detalhe sobre esse assunto é o roteirista Michael Arndt em seu site.
Repare que a CRISE da temporada, que mais comumente acontece no MIDPOINT, ou seja, no episódio central, em Os Outros se encontra no sétimo episódio, quando Wando morre. Esse episódio, além de ser um dos pontos mais tensos da curva dramática, é também o momento em que a trama principal abre caminho para a história de Marcinho e Lorraine (Gi Fernandes), uma espécie de "Romeu e Julieta" que, a partir daqui, guiará as tramas A dos próximos episódios. Ou seja, ocorre uma inversão. A morte de Wando faz com que a contenda dos vizinhos se torne menos importante que a ascensão de Sérgio, agora nitidamente a maior força antagonista da temporada.
Outra peculiaridade do sétimo episódio é o fato de seu principal incidente incitante ter ocorrido antes de seu início, no episódio seis, quando o miliciano Maradona conta a Sérgio que Wando o reconheceu por meio de sua tatuagem. A missão do episódio seguinte já está posta: se livrar definitivamente de Wando. E é a isso que assistiremos durante a crise. Pelo menos até que as tramas A (Wando sendo perseguido) e B (o caso de Mila com Amâncio) se cruzem e algo inesperado ocorra: em vez de Sérgio, o que mata Wando são seu próprio ciúmes e agressividade.
Então, resumindo ainda mais, se nomear os principais eventos da temporada de acordo com a classificação que propus na tabela, nosso SETUP é um condomínio de classe média onde ninguém parece verdadeiramente feliz, e Marcinho e Rogério protagonizam uma violenta briga que resulta em ameaças de morte entre as famílias de ambos (INCIDENTE INCITANTE). Como Wando é detido provisoriamente, temos um momento de HESITAÇÃO, que cessa assim que Marcinho ameaça Rogério com uma arma comprada por Cibele (INÍCIO DA JORNADA). Isso leva à reorganização do condomínio e da vida de todos; novas regras se estabelecem para Cibele e Amâncio, que precisam lidar com a possibilidade de Marcinho ser preso. O mais importante, surge um novo antagonista (Sérgio) neste estágio que chamei de TESTES E INIMIGOS. Isso leva a uma NOVA REALIDADE, em que Sérgio e sua milícia ganham poder e influência no Barra Diamond. Contudo, durante a PREPARAÇÃO PARA A CRISE, Wando reage às novas circunstâncias e, na CRISE, suas atitudes resultam em sua morte. Rogério e Mila ficam de mãos atadas enquanto a síndica Lúcia se encontra inviabilizada e ameaçada por Sérgio (QUASE DESISTÊNCIA). Em uma NOVA TENTATIVA, Rogério, Mila, Cibele, Marcinho e, principalmente, Lúcia, agem para se reerguer. No caso da síndica, há uma tentativa de vingança contra Sérgio. Mas ela falha e, no FUNDO DO POÇO, é assassinada pelo miliciano, ao passo que Cibele vê seu filho fugir e Amâncio considera se matar. A reação de Cibele e de Amâncio de pedir ajuda à delegada Magalhães encaminha as personagens ao CLÍMAX da temporada, quando Sérgio tem a oportunidade de assassinar Marcinho. A temporada chega à RESOLUÇÃO com Sérgio preso, Cibele e Amâncio de volta à sua antiga casa e à espera de um neto, Mila com um salão novo e Marcinho foragido. Ufa!
Os Outros é a concretização de como eventos narrativos bem estruturados permitem revelar as características mais íntimas das personagens. Tal qual nas tragédias gregas clássicas, a exacerbação de traços específicos de cada personagem constitui uma falha (a boa e velha hamartia) e leva a ações desmedidas que, no fim das contas, resultam em sua ruína. O que parece um certo tom absurdo da série não se encontra tão longe das atitudes horripilantes das heroínas e heróis trágicos. Diferentemente da Grécia Clássica, no entanto, em Os Outros não estamos lidando com personagens nobres e deidades, mas sim com tipos que poderíamos encontrar na porta ao lado (desejo muito que não). Lá como aqui, espera-se que observar seus excessos nos leve a refletir sobre e, mais importante, evitar os nossos próprios.
Comments